03/11/2013

Anda daí







Anda daí
que o céu está seco e tem nuvens no cabelo
Anda daí
Vamos desenhar dentes e narizes nas partes mais brancas
E vais ver
Não tarda nada e vai parecer-te que nasceram sorrisos brancos e roxos
em cada dez centímetros de escuridão.

Olha
Além, há um elefante azul escuro que desce em direcção aos castanheiros silenciosos
e ao rio adormecido

Mais ali
um pássaro de muitas asas
leva no bico um pedaço de cinzento frio
de onde saem melros curiosos e vento norte.

Anda, não tenhas medo
E aprecia todos estes rostos que saem
Do peito enferrujado da noite

Agora, afasta-te um pouco, por favor
E deixa-me acender desesperadamente as mãos
e a alma
Para que o céu seja uma planície de luz
E estes rostos fiquem um poucochinho mais
No céu, na noite e em mim.



13/06/2013

Vielas






Pelas vielas destas palavras
que não têm onde ficar
Passam os meus lábios cheios
Da tua tinta

Empresta-te aos meus riscos
e sê o meu papel!

12/06/2013

nenhum sítio





Mistura-me no teu sopro de silêncio, mãe
E suaviza este não-estar em nenhum sítio

A sardinheira diz-te adeus no vento
Enquanto os melros cantam mil canções
para me distrair

E este abraço sem nós pelo meio
Faz um barulho enorme de saudade.

31/05/2013

já vou







brincava no quintal
quando
“anda meu filho, vem lanchar.” e eu ia.
mas
“vai lavar primeiro as mãos.” e eu fui.

ensonado abri a torneira
meti as mãos na água
e quando levantei o rosto…
…estava velho.

mesmo assim, ainda disse:
- já vou, já vou.





30/05/2013

autorização





fica aqui a minha autorização para que as lombadas
dos compêndios possam usar camisolas de letras
sob a capa
...quando saírem comigo.

e tu não te esqueças do meu beijo
quando eu descer desta folha.





18/05/2013

o fato claro



sou o homem da garagem.
mexo em óleos parafusos fusíveis e travões
mas não deixo que o meu fato claro se enegreça de fumos e fique sujo de coisas previstas
por mecânicos desconhecidos de além-portas.

olha
o meu lenço é um desperdício
limpo passado a ferros de uma rotina
aperfeiçoada pelas marcas mais credíveis da praça.

sou o homem da garagem
e às doze e trinta de todos os dias
normalmente saio
e também normalmente
acho que as pessoas já não estão iguais
pelo menos às doze e trinta de todos os meus dias.

sou o homem da garagem e uso um fato claro.
às vezes em sonhos
dizem-me que me viram ou escrevem-me a dizer que me viram
mas em sonhos deles e não meus.
bom sinal penso eu.

é bom ser visto mesmo em sonhos pelos outros
e dizerem-me que me viram.
é sinal de que gostam de mim
mesmo que eu esteja quase sempre na garagem
a olhar para as válvulas para os carburadores e para os filtros usados das pessoas que entram e se vão embora.

sou o homem da garagem
e outro dia disseste-me escreveste-me
só para dizer que me viste por lá e eu estava de fato claro.
curioso que por várias questões mecânicas…
desde esse dia
que já não tenho bem a certeza onde devo deixar o carro:

na rua que vem para cá ou na rua que vai embora?
diz-me tu.

04/04/2013