1. ANIMAL UM
O animal touro. A gente toda,
sentada. O cavalo que dança, rodeia, foge.
O homem, o ferro e as piruetas do
homem colorido.
O grito do touro, o sangue do
touro, a dor do touro.
A arena, o pânico, a saída
impossível, a revolta que espuma e os cornos sem pontas.
E depois os urros das pessoas, as
risadas das pessoas.
A bancada das pessoas e os medos
vaidosos e aficionados das pessoas, os gritinhos das tiazinhas chocas e a
desvergonha desumana das pessoas, ali. Sem mais nem menos.
Outro ferro, mais outro e ainda
outro. O touro sofre, agita-se, encharca-se de medo.
- Senhor Director da Corrida, pode ser mais um?
- Dedico este ferro a si, Senhora Duquesa, e ao seu ilustre esposo!...
O dono do ferro parte para o meio
da praça. Está eufórico, doido e leva a cobardia nas mãos armadas.
O touro não é ninguém. O touro
não é um animal. O touro nem sequer é uma coisa.
Assiste-se ao terror programado.
O sofrimento é necessário para
que a mediocridade brilhe. O pagode generaliza-se.
E, a vida do touro é um trapo a
rasgar-se.
Bravura? Coragem? Força?
E, porque não deixar que o touro
se defenda com as armas naturais com que nasceu?
Bravura? Coragem? Força?
E, porque não colocar a “pega” em
primeiro lugar, antes do cansaço, do massacre e da tortura contínua a que o
touro é sujeito desde que a “festa” começa?
Bravura? Coragem? Força?
O animal touro. A besta. A besta
brava.
A gente toda, sentada. A gente
brava.
Os outros: homens que correm, que
festejam. Homens que sujam a vida com a morte dos princípios que não têm.
Depois, a morte, outra vez.
Depois, a morte tornada
banalidade, filmada, comentada em delírio incontrolável.
Depois, a morte cruel, em nome de
glórias, honras e nobrezas ridículas que não existem.
À volta de tudo, o dinheiro, os
grupos de interesses, a tradição patética e bárbara.
E na praça selvagem, espalha-se o
deleite medieval dos intervenientes, comparável, apenas, à insanidade medicada
de um hospício.
- Mamã, o touro é mau? O que é que fez o touro, mamã?
Que valores ficam gravados no
espírito infantil? Alguém quererá saber?
Que sociedade esperamos que nasça,
com tamanhos exemplos de brutalidade primária?
2. ANIMAL DOIS
O animal cão. A matrícula que se
afasta. A gente toda que vai embora.
O grito silencioso. A dor
lancinante do silêncio. A traição. O abandono.
O animal cão. A casa que era sua.
O menino que era seu. As carícias que eram suas.
Depois, o passeio estranho. As
pessoas que deixam de ser suas. Para sempre.
A memória que fica, na rua, na
estrada.
A alma, ainda, presa ao coração
do tempo de há pouco.
Os sorrisos, as brincadeiras, as
correrias na praia, as tropelias no campo e o sofá do dono, ali, há pouco, no
peito das imagens.
O animal cão. Agora, ali.
Perdido, aturdido, incrédulo e só.
Não acredita que o deixaram, ali.
Quando a porta se fechou,
esperou.
Depois correu, correu, correu até
quase rebentar de dor.
- Não me deixem ficar aqui! Por favor, não me deixem ficar aqui!
O animal cão. Triste. À espera da
mão, do olhar, do colo que não vem.
O animal cão. Longe de casa e da
vida toda.
A gente que vai embora. A
crueldade embrulhada em aparência. A negação humana de tudo em que se possa
acreditar.
O animal cão. O homem mentira,
indigno, povoado de demónios brutais.
O homem, a gente, as pessoas. Um
e todos, cheios de uma maldade, incrivelmente, disfarçada com gravatas,
perfumes e habilitações.
O animal cão. A gente que não
presta.
A gente que se vai embora, sem
olhar para trás. Brutais como bichos.
O animal cão. A gente sem gente
por dentro.
- Mamã, olha, está ali um cão! Que lindo, mamã! Parece triste, mamã!
Posso ficar com ele mamã? Posso?
Às vezes, tudo começa, mais ou
menos, assim.
in
“ O Coleecionador de Bugigangas”, págs..127-130, Edição Autor, Porto 2008.