18/06/2012

ANIMAIS EM ESTADO BRUTO





1. ANIMAL UM

O animal touro. A gente toda, sentada. O cavalo que dança, rodeia, foge.
O homem, o ferro e as piruetas do homem colorido.
O grito do touro, o sangue do touro, a dor do touro.
A arena, o pânico, a saída impossível, a revolta que espuma e os cornos sem pontas.
E depois os urros das pessoas, as risadas das pessoas.
A bancada das pessoas e os medos vaidosos e aficionados das pessoas, os gritinhos das tiazinhas chocas e a desvergonha desumana das pessoas, ali. Sem mais nem menos.

Outro ferro, mais outro e ainda outro. O touro sofre, agita-se, encharca-se de medo.

- Senhor Director da Corrida, pode ser mais um?

- Dedico este ferro a si, Senhora Duquesa, e ao seu ilustre esposo!...

O dono do ferro parte para o meio da praça. Está eufórico, doido e leva a cobardia nas mãos armadas.

O touro não é ninguém. O touro não é um animal. O touro nem sequer é uma coisa.
Assiste-se ao terror programado.
O sofrimento é necessário para que a mediocridade brilhe. O pagode generaliza-se.
E, a vida do touro é um trapo a rasgar-se.

Bravura? Coragem? Força?
E, porque não deixar que o touro se defenda com as armas naturais com que nasceu?
Bravura? Coragem? Força?
E, porque não colocar a “pega” em primeiro lugar, antes do cansaço, do massacre e da tortura contínua a que o touro é sujeito desde que a “festa” começa?
Bravura? Coragem? Força?

O animal touro. A besta. A besta brava.
A gente toda, sentada. A gente brava.
Os outros: homens que correm, que festejam. Homens que sujam a vida com a morte dos princípios que não têm.
Depois, a morte, outra vez.
Depois, a morte tornada banalidade, filmada, comentada em delírio incontrolável.
Depois, a morte cruel, em nome de glórias, honras e nobrezas ridículas que não existem.

À volta de tudo, o dinheiro, os grupos de interesses, a tradição patética e bárbara.
E na praça selvagem, espalha-se o deleite medieval dos intervenientes, comparável, apenas, à insanidade medicada de um hospício.

- Mamã, o touro é mau? O que é que fez o touro, mamã?

Que valores ficam gravados no espírito infantil? Alguém quererá saber?
Que sociedade esperamos que nasça, com tamanhos exemplos de brutalidade primária?





2. ANIMAL DOIS

O animal cão. A matrícula que se afasta. A gente toda que vai embora.
O grito silencioso. A dor lancinante do silêncio. A traição. O abandono.
O animal cão. A casa que era sua. O menino que era seu. As carícias que eram suas.

Depois, o passeio estranho. As pessoas que deixam de ser suas. Para sempre.
A memória que fica, na rua, na estrada.
A alma, ainda, presa ao coração do tempo de há pouco.
Os sorrisos, as brincadeiras, as correrias na praia, as tropelias no campo e o sofá do dono, ali, há pouco, no peito das imagens.

O animal cão. Agora, ali. Perdido, aturdido, incrédulo e só.
Não acredita que o deixaram, ali.
Quando a porta se fechou, esperou.
Depois correu, correu, correu até quase rebentar de dor.

- Não me deixem ficar aqui! Por favor, não me deixem ficar aqui!

O animal cão. Triste. À espera da mão, do olhar, do colo que não vem.
O animal cão. Longe de casa e da vida toda.

A gente que vai embora. A crueldade embrulhada em aparência. A negação humana de tudo em que se possa acreditar.

O animal cão. O homem mentira, indigno, povoado de demónios brutais.
O homem, a gente, as pessoas. Um e todos, cheios de uma maldade, incrivelmente, disfarçada com gravatas, perfumes e habilitações.

O animal cão. A gente que não presta.
A gente que se vai embora, sem olhar para trás. Brutais como bichos.
O animal cão. A gente sem gente por dentro.

- Mamã, olha, está ali um cão! Que lindo, mamã! Parece triste, mamã! Posso ficar com ele mamã? Posso?

Às vezes, tudo começa, mais ou menos, assim.


in “ O Coleecionador de Bugigangas”, págs..127-130, Edição Autor, Porto 2008.


12/06/2012

CORAIS


Há corais amargos e desbotados
No alpendre parado que não tem flores
A nostalgia chegou cedo no outono
E nunca mais se despegou das pedras
E dos barros da tarde

Só os colos da memória
Sobrevivem aos silêncios

Dá vontade de estar triste
Quando se olha o cinzento apressado
Das paredes que nos cercam
E das coisas que se vão embora

Quem nasce espera coisas
Na água e na alma
E desencanta-se com o vazio

Faz tempo que crescer
Tem pregos e mágoa
Entre as folhas
Das árvores
E dos livros

in "As palavras côncavas", p.27, Editora Ausência, Porto, 2003.

07/06/2012

O DISEUR



Diz as palavras
Como quem abraça qual tolo
A água, o ar, o tijolo

Diz as palavras
E grita
Como quem vomita
A tinta

Tem olhos de lápis
Nas veias do gesto
E tem suor
Na raiva da voz

Tem paisagens nas mãos
Abertas em poemas
E usa o coração
Para esconder as penas

Quando chega à sala
Despe-se da chuva
Como se a chuva fosse
Um voo sem escala
A molhar-lhe a teimosia

Despe-se do degredo
Do medo
Da noite que nasceu fria

Deita fora o cansaço
Da dor e da imensidão
Da rua
E inventa o amor
Como se fosse
Uma coisa sua

Ele é o “diseur”
Aquele, ali, é o “diseur”
De carne, de pó, de pedaços

Esse mesmo
O picheleiro de emoções
O guindaste das estrelas
O senhor dos papéis
Cheios de vitrais e marcações
O senhor dos poentes e capitéis
De bíblias, de sementes
De letras a esmo
De nuncas, de sempres
Esse mesmo

Aquele, ali, é o “diseur”
Levantem-se por favor
Quando ele entrar

Porque aquele, ali, é o “diseur”
E ele diz coisas tão belas e tão lindas
Que nos fazem sonhar
Ilhas longe daqui
E lá vamos nós sem demorar nada

E ele é simples como a terra molhada
Grave como a nostalgia
Dos babeiros de ontem
Alegre e sedutor
Como o bico das canetas

Ele é o “diseur”
Diz a vida de um trago
Senta-se no infinito de olhar vago
Como um fantoche partido
Chorando um verso perdido
Na distância da idade

Ele é o “diseur”
Aquele, ali, é o “diseur”
Uma lenda de verdade
Um duende, um gnomo, um gigante
Um assomo de infante
Num bocado de luar

Ele é o “diseur”
Aquele, ali, é o “diseur”
Levantem-se por favor
Quando ele entrar.