12/07/2012

OS OLHOS DO TRABALHADOR


Prometeram cristal e nem de vidro foram
As palavras de adeus na sala vazia.
Prometeram seda e nem farrapos deram
Ao corpo dobrado que tremia.

Mesmo assim havia réstias de cor
Nos olhos tristes do trabalhador.

Não falaram dos dias de batalha
Do entardecer lento das horas
Com toneladas de brio

Não falaram da febre e do frio
Dos nervos postos em navalha

Nem falaram da honra de ser assim

Apenas disseram que o tempo
Era tempo de fim.

E, agora…
Já nem a bruma sossega
A saudade da entrega
De tantos anos assim mordomo.

Já nem as canções de infância
Chegam com nitidez.
Nem o borbulhar frenético
Daqueles dias de trabalho feliz
Onde os amigos e os outros tinham rosto.

Tudo passou e que desgosto
Estar em frente de alguém
Que num tom solene e desumano
Lhe mostra com crua certeza
Que tipo de pano
É o tecido da empresa.

E, apenas num segundo,
Os senhores disseram tudo.
Adeus.

E o trabalhador vai ao fundo da alma
Buscar mais tristeza.

Abafada. Dorida. Muita.

Prometeram cristal e nem de vidro foram
As palavra de adeus na sala vazia
Prometeram seda e nem farrapos deram
Ao corpo dobrado que tremia.

Mesmo assim havia réstias de cor
Nos olhos tristes do trabalhador.


in "Coisas do Tempo", págs. 41-42, ed. autor, Porto, 1999.


08/07/2012

TEORIA


Masculino é o masculino de masculina e o masculino de feminino.
Feminino é o feminino de masculino e o masculino de feminina.
Masculina é o feminino de masculino e o masculino de feminina.
Feminina é o feminino de feminino e o feminino de masculina.

Há um masculino para cada feminino e um feminino para cada masculino.

Masculina é todo o feminino não feminina.
Feminino é todo o masculino não masculino.
No masculino há o masculino-feminino e o masculino-masculino.
No feminino há o feminino-feminina e o feminino-masculina.

No masculino, o masculino-masculino é a lógica, a razão.
No feminino, feminina-feminina é o pleonasmo.

Masculina é feminino. Feminino é masculino. Masculino é só masculino.
Feminino é feminina se feminino não for masculino.
Masculina nunca é masculino.
Masculina e feminina são feminino. Masculino e feminino são masculino.
Masculino é masculino. Feminino é masculino e feminino.

O género gera nele próprio sub-géneros e assume fragilidade de sentido.


in “Coisas do Tempo”, ed.autor, Porto, 1999.

...


Tenho saudades mas não tenho
O sentido da dor que sinto
Quando olho para mim.

É curioso como o tempo
Construiu, às escondidas,
Tanta distância assim.



in “Coisas do Tempo”, ed.autor, Porto, 1999.

07/07/2012

PAÍS


Este é o país
Que em trovas
Novas
Se agiganta
Um pedaço de merda
Um verso
Disperso
Que se canta
Um pequeno gesto
Manifesto
Um sobressalto
Um azedume pontual
Anormal
Uma tira de asfalto
Um sal
De mar seco
Um gavião
No chão

Este é o miolo negro
O medo
Tornado nação
Como se fora um brinquedo
Um amuleto de má-sorte
Um pedaço difícil
De míssil
Um projecto aberto
De morte

E há aqui tantas mentiras
Giras
Tantos restos
Abjectos
De dizeres
Tantos lagos de malquereres
Tantas cordas
Tantas luzes
Tantos pescoços
De avestruzes
E a verdade
Moribunda-se
Quase exangue
Como se fora um sopro
Um bang






E a mágoa
Repete-se na voz calma
Do desastre
Na saudade doente
Do passado
Presente

É neste tempo
Que amadurece
A estranha revolta
Que volta meia volta
Volta
E a raiva vem
Vai
Vai e vem
Vem e vai
Enquanto a memória
Planta lágrimas
Que não morrem mais.



in “As palavras côncavas”, págs.39-40, Editora Ausência, Porto, 2003