05/10/2011

invasão



trezentos e setenta e nove homens
com gravatas
amarelas
e blocos de notas agachados
nos olhos líquidos

(nos olhos onde
gaviões sem fusíveis
alumiam o trajecto hesitante
das dúvidas simples…)

marcham em direcção
a mim
como se o planeta incompleto
da minha estranheza
fosse uma coisa perpendicular
a todas as imagens desta
melancolia permanente
e farpada
onde o frio triste de outros universos
passeia sem descanso.

02/10/2011

ao longe



não há dedadas nestas canecas
de barro nem bonecos com beiças
estranhas

e eu não tenho dúvidas:

precisava de experimentar
outra vez
a rotina fugidia de parcelas
distantes e macias
como o cheiro amarelo da língua
dos jarros

e o bafo morno do granito molhado
pela neblina dos algarismos
outonais de todos
os que de mim
partiram
numa embarcação selvagem
presa por clips
e saliva de flamingo

ao longe a voz da água
chama pela labareda cristalina
da melancolia

e o tempo quase
morre.

28/09/2011

este vale



este vale
vale apenas
pelo rio controverso
com corrente de aço
e vidro branco
onde as partículas de penumbra
se afogam sem ruído

por vezes neste vale
a água mastiga o sol
envidraçado
que cansado
desiste de nadar

então as borboletas principiam a contar histórias
sobre a alegria breve de tudo
o que existe.

planície


 

abro este livro de mil novecentos e…
e esqueço este tempo abafado de outono  que anda
por aí 
ainda criança 
ainda sem chuva

e este cheiro de tinta e de papel e de anos
de tantos anos…
pintam este instante com as cores da floresta que um dia
troquei
pela pressa desarticulada
da planície sem margens.

25/09/2011

de memória


no coração da árvore há um pardal molhado
tristíssimo
esperando em vão que o vento lhe soletre
só uma última vez
o nome das gotas tranquilas e longínquas
de março

entretanto
nasce um brilho azul vindo da planície matemática
da memória

e eu não consigo perceber por quem chamam
as violetas clássicas das gavetas
nem de que matéria é feita a solidão problemática
dos livros fechados
nem qual a razão para que as fivelas cúbicas e tardias da chuva
me encharquem de saudades anónimas e frias
e teimosamente repetidas
na geografia da noite

no coração daquela árvore há um pardal molhado
tristíssimo
esperando em vão que o vento
lhe soletre
só uma última vez
o nome de todas as sequências originais
do amor

entretanto
nasce um brilho azul vindo da planície matemática
da memória

e ao mesmo tempo
eu não consigo conquistar a simpatia complexa
do silêncio
nem catalogar as lágrimas utilizadas
pelo espírito

e não compreendo por quem chamam
os braços enfraquecidos das nuvens
agora que já não há
possibilidades de paisagem
 
entretanto
sento-me na coragem amarga
dos meus olhos que teimam
dirigir-se desprotegidos
a estas páginas
de tempo 
escrito em estrelas 
que já são gente

de memória
posso contar sempre com os mais
longínquos pedaços
do meu peito disperso

mesmo que

de memória
eu morra mil vezes cheio de vazios
em cada triste pestanejar
do poente.

20/09/2011

no céu dos gatos


(para a Kelly, com saudade)


primeiro

passaste de soslaio
pelo canto da varanda

depois

olhaste o canteiro mais uma vez
olhaste a sala mais uma vez
buscaste o quarto mais uma vez
pegaste nas nossas lágrimas

e foste embora
não sei para onde

mas

sei que não estás no céu dos gatos
porque
o tamanho da tua alma sempre foi
dez mil vezes maior que o teu corpo
pequenino

não sei mesmo se há um céu dos gatos

mas

mesmo que haja
tu preferes andar
por aqui
entre o coração e os olhos
do tempo sem retorno
 

sei muito bem que andas
por aqui

ainda há pouco
te vi por aqui

na verdade, Kelly

não sei mesmo se há um céu dos gatos
mas mesmo que haja tu vais
arranjar maneira
de estar sempre por aqui

como ainda hoje o fizeste.

08/09/2011

feira das nozes


naquele dia, a feira das nozes teve um movimento anormal:
milhares de pessoas andaram por ali
às voltas, às voltas
para um lado e para o outro
às voltas, às voltas

mas apesar disso
ao fim do dia
os vendedores queixaram-se:

- “hoje, não se fez negócio! não se vendeu a ponta de um corno!”

no entanto
a concentração de velhos desdentados
foi um êxito.

30/08/2011

e já agora


escutem:

não quero linhas de comboio
nos meus cadernos de escola

não tenho túneis
na mochila.

e já agora

o compasso que enferrujou
nas férias
não sabe ler
nem gosta de matemática.

por isso

não contem comigo
para a catequese.

24/08/2011

caderno


por vezes encanto-me
com a ténue espessura dos caules das plantas
silenciosos e graves adormecendo
num aceno intranquilo de solidão teimosa
e permanente.

mas não tenho força para dizer-lhes devagar
o comprimento hercúleo da seara em que repousa
a incapacidade de vitória

nem para falar-lhes sossegadamente das montanhas
que a melancolia ergue
por mais que a água das fontes o não permita
neste lugar.

por vezes entalo o som respirado das flores
entre as mãos nuas do meu caderno
vês?

mas não chega para que a tormenta
deste mar enterrado na poeira
abandone o casco de toda esta fronteira
de cores roubadas.