31/08/2012

quando eu for grande



(para a minha filha Sara e para o meu filho Pedro)



quando eu for grande
quero ser criança
ficar
nos olhos dos pássaros
com vontade
de ficar
nos olhos dos pássaros
quando
eles olham para as flores
que ficam
nos olhos
dos outros pássaros
que as crianças
desenham
num papel qualquer.

quando eu for grande
quero ser
uma criança a brincar
num desenho bonito
de outra criança
como tu.





01/Junho/1999, dia mundial da criança

05/08/2012

O pijama


A questão não é simples: visto o pijama verde com couves cor de tijolo e tinteiros vermelhos ou o pijama castanho com lombrigas amarelas e tractores brancos?

A noite vai descendo: escorre pelo tecto, esfrega-se nas paredes e deita-se a meu lado.
A noite respira. E respira, sôfrega, sobre a minha almofada. E conta-me, sôfrega, longas histórias de modistas carecas, que gostam de tremoços salgados e de bacias plásticas.

Depois a dúvida: já vesti o pijama? Qual?
Onde é que eu ia, a pensar que não ia? Onde é que eu estava, a pensar que não estava?
Adormeci? Ou não?

Estou: o verbo no presente. Estive: o verbo no passado?
O verbo faz-se? O verbo fez-se?
O verbo: homem? mulher? deus? ou, apenas, noite? ou, talvez, se calhar, pijama?

O livro. E Platão assemelha-se a um parafuso que Kant perdeu. O Mickey – soube há pouco – anda pelas ruas de Londres, à procura das botas do senhor Maia que, ontem, fugiu para as serras, paginadas, do Eça.

A noite vai descendo: sacode-me os olhos, bufa-me nas pestanas e pesa-me sobre os óculos, enquanto, lá longe, a sanita chama por mim.

Outra vez? Agora, que já estava quentinho, é que me chamas? Está bem, já vou!

O espelho. De soslaio, olho a barba que o vidro mostra. Quem é aquele, ali?
Credo, que sono!
Ei, tu aí, no espelho: vem deitar-te, anda! Já é tão tarde!

Quantas caras tem uma viagem no quarto, feita, aos ziguezagues, com as mãos no sexo? E as luzes têm as mesmas lâmpadas, quando já é de madrugada?
Para onde vão os cavalos de borracha e os baldes do lixo? Onde se escondem as flores e as sandes de salpicão?

A noite continua a descer pelas coisas. E as dobras do lençol fazem desenhos que são cornucópias, navios bordados e monstros de pano e de sombra, com as linhas coloridas.

O pijama está debruçado na cama. Tem os braços e as pernas dobrados em ângulos e traços, sem contornos e sem corpo, ainda.

Os monstros de pano já foram embora?

Também há monstros no quarto de banho, desenhados à sorte e colados aos azulejos, esbatidos em cores indefinidas. São cinzentos quase verdes, azuis quase brancos, e olham, para mim, enquanto estou sentado na sanita, cheio de sono e de medos e cheio de dúvidas sobre quem faz aqueles desenhos nos azulejos, e se os faz, só para assustar quem se levanta de noite, e os olha, com os olhos cheios de pijamas e de dúvidas e de sustos.

Quem é aquele, no espelho?

Regresso à cama, na boleia dos chinelos.

Quem era aquele, no espelho?

O tempo enche-se de bigornas, de pássaros e de roncos. Os olhos fecham a porta da consciência e o mar passa a ser um par de cortinas brancas, pregadas à última volta da noite, ao último passeio da noite, ao esboço distante dos olhos que fogem, pela escuridão cheia de imagens e de sons. A noite parte-se em luz e chilreios. Amanhece.


São seis e cinquenta e oito, tsf, notícias.
O despertador tem mamas, voz esganiçada e berra frases repetidas.

A noite, que é feito da noite?

São sete horas e dez minutos. O despertador, assume a chuva, daqui a pouco. Depois, diz dezenas de parvoíces seguidas, até ter a certeza que me levanto.

E o despertador tem mamas! O despertador tem mamas!

A noite, onde está a noite?

O pijama, afinal, é preto com transferidores verdes e torneiras roxas. Comprei-o, durante a noite, numa feira que se realiza, semanalmente, no meu quarto de banho. Foi uma pechincha, disse-me a cigana conhecida.
 
Quem era aquele, no espelho?
O que fazia, ele, lá dentro, cheio de sono e de sombras?

Um dia vou buscar-te. A sério. Um dia vou buscar-te!

02/08/2012

senhora flor




as flores, as mais pequenas, sofrem mais. não se escondem entre azinheiras ou entre salgueiros, não podem. apenas estão lá, sozinhas, no chão, peito para cima, olhando o céu que fica longe do corpo.
e no céu, se calhar, não há flores. e no céu, se calhar, não há nada que interesse às flores. de que serve então as flores ficarem, lá, sozinhas, no chão, peito para cima, olhando o céu que fica longe do corpo?

o vento não me pergunta mas muda-me de sítio, não me perguntou mas mudou-me de sítio. e, por uns momentos, estou num outro lugar, agora.

e pergunto à flor mais velha, das mais velhas flores, no chão junto ao ribeiro:
diga-me, senhora flor, temos mesmo de ficar ali? olhe, ali, sozinhas, à beira das urzes e das papoilas e das pedras, peito para cima, olhando o céu que fica longe de nós? tem a certeza, senhora flor?

sabe? preferia ficar aqui, se pudesse, perto de si, ouvindo histórias. sonhei que um dia poderia ficar aqui, perto de si, ouvindo histórias. mas, um instante destes, eu sei, o vento vai levar-me de volta, outra vez. para lá, para além.

conte-me uma história, conta?
sabe? vou embora, daqui a pouco, sinto isso na alma. e gostava tanto de ouvir uma história!...

as flores, as mais pequenas, sofrem mais. foi sempre assim, desde sempre. não se escondem. nem sabem pedir ao vento que as mude de chão. ficam lá, estão lá, à espera de um pedaço de céu que não fique tão longe das pétalas.

era uma vez…

- depressa, senhora flor, que vem aí o vento!


In MaiaHoje, 28.11.2008

acabou


(para o meu pai)





acabou.
lá em cima, apenas as aves esvoaçam, metódicas, silenciosas e tristes
enquanto a brisa sopra, com asas de rosa, uma melodia de adeus e de frio.

acabou.
a solidão desceu, como nuvem, sobre todas as raízes impossíveis de conter
neste soluço invisível de desespero.

acabou.
fecho a mão, fecho a mão com força, fecho a mão com muita força
mas já não está ninguém lá dentro.

acabou.
lá em cima, as aves continuam a esvoaçar, metódicas, silenciosas e tristes
sobre esta dor insuportável da partida.

acabou.
lá em cima, as aves esvoaçam, metódicas, silenciosas e tristes

e são cúmplices deste grito surdo que se embrenha
terra adentro.

acabou.
partiste e levaste contigo, e para sempre, as últimas sílabas
das minhas primeiras palavras:

-pa… paa… Pai!





Janeiro de 2011