A
questão não é simples: visto o pijama verde com couves cor de tijolo e
tinteiros vermelhos ou o pijama castanho com lombrigas amarelas e tractores
brancos?
A
noite vai descendo: escorre pelo tecto, esfrega-se nas paredes e deita-se a meu
lado.
A
noite respira. E respira, sôfrega, sobre a minha almofada. E conta-me, sôfrega,
longas histórias de modistas carecas, que gostam de tremoços salgados e de
bacias plásticas.
Depois
a dúvida: já vesti o pijama? Qual?
Onde
é que eu ia, a pensar que não ia? Onde é que eu estava, a pensar que não
estava?
Adormeci?
Ou não?
Estou:
o verbo no presente. Estive: o verbo no passado?
O
verbo faz-se? O verbo fez-se?
O
verbo: homem? mulher? deus? ou, apenas, noite? ou, talvez, se calhar, pijama?
O
livro. E Platão assemelha-se a um parafuso que Kant perdeu. O Mickey – soube há
pouco – anda pelas ruas de Londres, à procura das botas do senhor Maia que,
ontem, fugiu para as serras, paginadas, do Eça.
A
noite vai descendo: sacode-me os olhos, bufa-me nas pestanas e pesa-me sobre os
óculos, enquanto, lá longe, a sanita chama por mim.
Outra
vez? Agora, que já estava quentinho, é que me chamas? Está bem, já vou!
O
espelho. De soslaio, olho a barba que o vidro mostra. Quem é aquele, ali?
Credo,
que sono!
Ei,
tu aí, no espelho: vem deitar-te, anda! Já é tão tarde!
Quantas
caras tem uma viagem no quarto, feita, aos ziguezagues, com as mãos no sexo? E
as luzes têm as mesmas lâmpadas, quando já é de madrugada?
Para
onde vão os cavalos de borracha e os baldes do lixo? Onde se escondem as flores
e as sandes de salpicão?
A
noite continua a descer pelas coisas. E as dobras do lençol fazem desenhos que
são cornucópias, navios bordados e monstros de pano e de sombra, com as linhas
coloridas.
O
pijama está debruçado na cama. Tem os braços e as pernas dobrados em ângulos e
traços, sem contornos e sem corpo, ainda.
Os
monstros de pano já foram embora?
Também
há monstros no quarto de banho, desenhados à sorte e colados aos azulejos,
esbatidos em cores indefinidas. São cinzentos quase verdes, azuis quase
brancos, e olham, para mim, enquanto estou sentado na sanita, cheio de sono e
de medos e cheio de dúvidas sobre quem faz aqueles desenhos nos azulejos, e se
os faz, só para assustar quem se levanta de noite, e os olha, com os olhos
cheios de pijamas e de dúvidas e de sustos.
Quem
é aquele, no espelho?
Regresso
à cama, na boleia dos chinelos.
Quem
era aquele, no espelho?
O
tempo enche-se de bigornas, de pássaros e de roncos. Os olhos fecham a porta da
consciência e o mar passa a ser um par de cortinas brancas, pregadas à última
volta da noite, ao último passeio da noite, ao esboço distante dos olhos que
fogem, pela escuridão cheia de imagens e de sons. A noite parte-se em luz e
chilreios. Amanhece.
São
seis e cinquenta e oito, tsf, notícias.
O
despertador tem mamas, voz esganiçada e berra frases repetidas.
A
noite, que é feito da noite?
São
sete horas e dez minutos. O despertador, assume a chuva, daqui a pouco. Depois,
diz dezenas de parvoíces seguidas, até ter a certeza que me levanto.
E
o despertador tem mamas! O despertador tem mamas!
A
noite, onde está a noite?
O
pijama, afinal, é preto com transferidores verdes e torneiras roxas. Comprei-o,
durante a noite, numa feira que se realiza, semanalmente, no meu quarto de banho.
Foi uma pechincha, disse-me a cigana conhecida.
Quem
era aquele, no espelho?
O
que fazia, ele, lá dentro, cheio de sono e de sombras?
Um
dia vou buscar-te. A sério. Um dia vou buscar-te!