05/08/2012

O pijama


A questão não é simples: visto o pijama verde com couves cor de tijolo e tinteiros vermelhos ou o pijama castanho com lombrigas amarelas e tractores brancos?

A noite vai descendo: escorre pelo tecto, esfrega-se nas paredes e deita-se a meu lado.
A noite respira. E respira, sôfrega, sobre a minha almofada. E conta-me, sôfrega, longas histórias de modistas carecas, que gostam de tremoços salgados e de bacias plásticas.

Depois a dúvida: já vesti o pijama? Qual?
Onde é que eu ia, a pensar que não ia? Onde é que eu estava, a pensar que não estava?
Adormeci? Ou não?

Estou: o verbo no presente. Estive: o verbo no passado?
O verbo faz-se? O verbo fez-se?
O verbo: homem? mulher? deus? ou, apenas, noite? ou, talvez, se calhar, pijama?

O livro. E Platão assemelha-se a um parafuso que Kant perdeu. O Mickey – soube há pouco – anda pelas ruas de Londres, à procura das botas do senhor Maia que, ontem, fugiu para as serras, paginadas, do Eça.

A noite vai descendo: sacode-me os olhos, bufa-me nas pestanas e pesa-me sobre os óculos, enquanto, lá longe, a sanita chama por mim.

Outra vez? Agora, que já estava quentinho, é que me chamas? Está bem, já vou!

O espelho. De soslaio, olho a barba que o vidro mostra. Quem é aquele, ali?
Credo, que sono!
Ei, tu aí, no espelho: vem deitar-te, anda! Já é tão tarde!

Quantas caras tem uma viagem no quarto, feita, aos ziguezagues, com as mãos no sexo? E as luzes têm as mesmas lâmpadas, quando já é de madrugada?
Para onde vão os cavalos de borracha e os baldes do lixo? Onde se escondem as flores e as sandes de salpicão?

A noite continua a descer pelas coisas. E as dobras do lençol fazem desenhos que são cornucópias, navios bordados e monstros de pano e de sombra, com as linhas coloridas.

O pijama está debruçado na cama. Tem os braços e as pernas dobrados em ângulos e traços, sem contornos e sem corpo, ainda.

Os monstros de pano já foram embora?

Também há monstros no quarto de banho, desenhados à sorte e colados aos azulejos, esbatidos em cores indefinidas. São cinzentos quase verdes, azuis quase brancos, e olham, para mim, enquanto estou sentado na sanita, cheio de sono e de medos e cheio de dúvidas sobre quem faz aqueles desenhos nos azulejos, e se os faz, só para assustar quem se levanta de noite, e os olha, com os olhos cheios de pijamas e de dúvidas e de sustos.

Quem é aquele, no espelho?

Regresso à cama, na boleia dos chinelos.

Quem era aquele, no espelho?

O tempo enche-se de bigornas, de pássaros e de roncos. Os olhos fecham a porta da consciência e o mar passa a ser um par de cortinas brancas, pregadas à última volta da noite, ao último passeio da noite, ao esboço distante dos olhos que fogem, pela escuridão cheia de imagens e de sons. A noite parte-se em luz e chilreios. Amanhece.


São seis e cinquenta e oito, tsf, notícias.
O despertador tem mamas, voz esganiçada e berra frases repetidas.

A noite, que é feito da noite?

São sete horas e dez minutos. O despertador, assume a chuva, daqui a pouco. Depois, diz dezenas de parvoíces seguidas, até ter a certeza que me levanto.

E o despertador tem mamas! O despertador tem mamas!

A noite, onde está a noite?

O pijama, afinal, é preto com transferidores verdes e torneiras roxas. Comprei-o, durante a noite, numa feira que se realiza, semanalmente, no meu quarto de banho. Foi uma pechincha, disse-me a cigana conhecida.
 
Quem era aquele, no espelho?
O que fazia, ele, lá dentro, cheio de sono e de sombras?

Um dia vou buscar-te. A sério. Um dia vou buscar-te!

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